"História de uma Fita Azul" é um conto escrito por Machado de Assise publicado originalmente no "Jornal das Famílias", de dezembro de 1875 a fevereiro de 1876.
Joaquim Maria Machado de Assis, nascido em 1839, é considerado o maior nome da literatura nacional. Foi poeta, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário. Sua obra constitui-se em nove romances e peças teatrais, 200 contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de 600 crônicas. Morreu em 1908, aos 79 anos de idade.
Marianinha achou um dia
na cesta de costura um pedaço de fita azul. Era naturalmente resto de algum
cinto ou coisa que o valha. Lembrou-se de bordar na fita dois nomes: Marianinha e Gustavo.
Gustavo!
mas por que Gustavo e não Alfredo, Benedito ou
simplesmente Damião?
Por uma razão muito
clara e singela, leitor ignaro; porque o namorado de Marianinha não se chamava
Alfredo, nem Benedito, nem Damião, mas Gustavo; não Gustavo somente, mas
Gustavo da Silveira, rapaz de vinte e sete anos, moreno, cabelo preto, olhos idem, bacharel, aspirante a juiz municipal,
tendo sobre todas estas qualidades a de possuir umas oitenta apólices da dívida
pública.
Amavam-se estas duas
criaturas, se assim se pode dizer de um capricho começado num baile e não sei
se destinado a morrer numa corrida. A verdade é que no curto espaço de três
meses haviam já trocado cinqüenta cartas, algumas compridas, todas cheias de
protestos de amor até à morte. Gustavo dizia-lhe mais de uma vez que ela era o
anjo com que ele sonhara durante toda a vida, e ela retribuía-lhe esta fineza
dizendo a mesma coisa, mas com estilo diferente, sendo o mais espantoso deste
caso que nem ele nem ela haviam sonhado com nenhum anjo. Acrescentarei até que
o jovem Gustavo havia já feito a mesma revelação a quatro namoradas, o que
diminui a sinceridade da que fazia agora à quinta. Excluídas porém estas e
outras flores de retórica, a verdade é que eles pareciam gostar um do outro, e
se quiserem saber mais alguma coisa leiam a novela para diante.
Lembrou-se a Marianinha
de bordar o nome do namorado e o seu no pedaço de fita azul; bordou-os com linha
de seda branca, e com tanta perfeição o fez, que teve vontade de ir mostrar o
trabalho à avó. A idéia porém de que a srª D. Leonarda lhe passaria uma áspera
repreensão a demoveu do intento e a obra ficou inédita até passar às mãos do
jovem Gustavo.
Não pense a leitora que
a srª D. Leonarda ignorasse absolutamente o namoro da neta. Oh! não! A srª
Leonarda, além de ser excelente doceira, tinha o olho mais perspicaz deste
mundo. Percebeu o namoro e calou-se a ver em
que paravam as modas. Já estava de longa data acostumada a estes romances da
neta, e só lastimava não ver o capítulo do fim.
“A culpa é dela, pensava
a srª D. Leonarda. Quem há de querer casar com uma estouvada daquele gênero,
que ainda bem não acabou um namoro, já começa outro?”
Indiretamente fazia-lhe
sentir esta censura toda íntima, dizendo-lhe às vezes
- O major Alvarenga foi o primeiro e último namoro. Vi-o
num dia de entrudo; casamo-nos logo depois da Páscoa. Hoje, as moças gostam de
andar de namoro em namoro, sem acabar de escolher um. Por isso muitas ficam
para tias.
Ora, é de notar que o
bacharel Gustavo caíra-lhe em graça, e que de todos os namorados de Marianinha
era este o que mais adequado lhe parecia. Não aprovaria certamente a idéia da
fita bordada com os dois nomes, porque a srª D. Leonarda tinha como teoria que
uma moça apenas deve olhar para o namorado; escrever-lhe era já atrevimento, e
profunda imoralidade. Mas desejava e muito que aquele casamento se fizesse,
porque, mais que nenhum outro, o genro lhe parecia de feição. Com um pouco mais
de ardor da parte dos dois namorados, estou certo de que nem escreveria estas
páginas; tinham casado, estavam com filhos, vivendo em paz
Gustavo foi à casa de D.
Leonarda na quinta-feira seguinte, isto é, dois dias depois do dia em que
Marianinha acabava de bordar os dois nomes na fita azul.
- Tenho uma coisa para lhe dar,
disse a moça.
- Ah! O que é?
- Adivinhe.
- Não posso adivinhar.
- Adivinhe.
- Um par de botões?
- Não.
- Uma flor?
- Não.
- Uma charuteira?
- Não.
- Não posso… Ora, espere… Será….
não… não é.
- Não é o quê?
- Um lenço de assoar.
- Ora! respondeu Marianinha
encolhendo os ombros. E tirou do bolso a fita azul com os dois nomes bordados.
- Bonito! exclamou Gustavo.
- É uma lembrança para se não
esquecer de mim.
- Oh! querida! pois eu hei de
nunca esquecer-me de você. Não é você o anjo…
Aqui entrava a qüinquagésima
edição do sonho que ele não tivera nunca.
Gustavo disfarçadamente beijou
a fita azul e guardou-a no bolso, de maneira que o não visse a srª D. Leonarda.
Marianinha ficou muito contente
com o bom agasalho que tivera a sua lembrança não menos que com o elogio da
obra, tão certo é que o amor não dispensa a vaidade, antes esta é muita vez
complemento daquele.
- Que lhe darei eu para que se
não esqueça de mim? disse Gustavo daí a pouco, em ocasião em que pôde
murmurar-lhe estas palavras.
- Nada, disse a moça sorrindo.
- Ama-me então como sempre?
perguntou ele.
- Como sempre!
Todo o resto do diálogo foi
assim por este gosto, como naturalmente o leitor e a leitora compreendem, se é
que já não passaram pelo mesmo como eu sou capaz de jurar.
Marianinha era muito graciosa,
além de bonita. Os olhos eram pequenos e vivos; ela sabia-os mover com muita
gentileza. Não era mulher que do primeiro lance fizesse apaixonar um homem; mas
com o tempo tinha o condão de insinuar-se-lhe no coração.
Foi isto justamente o que
aconteceu com o nosso jovem Gustavo, cujo namoro durava já mais tempo que os
outros. Começara por brinquedo, e acabara sério. Gustavo foi-se a pouco e pouco
sentindo preso nas mãos da moça, de maneira que o casamento, coisa em que não
pensara nunca, entrou a surgir-lhe no espírito como uma coisa muito desejável e
indispensável.
- Afinal, pensava ele, devo
acabar casado, e mais vale que seja com uma boa menina como aquela é, alegre,
afetuosa, educada… A educação acabá-la-ei eu, e o terreno é próprio para isso;
farei dela uma verdadeira esposa.
Com estas disposições, deixou
Gustavo as suas habituais distrações, teatros, passeios, ceatas e todo se
entregou ao cultivo do amor. D. Leonarda viu que a assiduidade era maior e
concluiu razoavelmente que desta vez iria o barco ao mar. Para animar a pequena
falou-lhe na conveniência de casar com pessoa que estimasse e não deixasse de
dar duas ou três esperanças ao pretendente.
As coisas foram assim andando
de modo que o bacharel assentou de ir pedir a moça à avó por ocasião dos anos
dela
que era a 27 de outubro.
Estavam então no dia 10 do referido mês. Em novembro podiam estar unidos e
felizes.
Gustavo conversou com alguns
amigos, e todos lhe aprovaram a resolução, mormente os que freqüentavam a casa
de D. Leonarda e não queriam ficar brigados com o futuro neto da viúva do
major.
Um desses freqüentadores,
comensal antigo, de passagem lhe observou que a moça era um tanto caprichosa;
mas não o fez com a idéia de o afastar da pretensão, o que era difícil naquele
caso, mas antes por lhe aplanar a dificuldade mostrando-lhe o caminho que devia
seguir.
- O coração é excelente,
acrescentou este informante; nisto sai à avó e à mãe, que Deus tem.
- Isto é o essencial, disse
Gustavo; caprichos são flores próprias da idade; o tempo as secará de todo.
Gosto muito dela, e quaisquer que fossem os seus defeitos, casaria com ela.
- Oh! sem dúvida! Pela minha
parte desde já lhe afianço que hão de ser felizes.
Tudo corria portanto comme
sur des roulettes. O pedido estava prestes; prestes o casamento.
Gustavo imaginou logo um plano de vida, mediante o qual ele seria no ano
seguinte deputado, logo depois presidente de província, e um dia alguma coisa
mais. A imaginação pintava-lhe a glória e o prazer que daria a sua mulher;
imaginava um filhinho, uma casa cercada de laranjeiras, um paraíso…
Ora, logo na noite do dia 10,
estando a conversar com a namorada, esta lhe perguntou pela fita azul. Eram
passados seis meses desde a noite em que ela lha dera. Gustavo empalideceu; e a
razão era que, não estando naquele tempo apaixonado como agora, nunca mais
pusera olhos em cima da fita. Murmurou como pôde alguma coisa, que ela não
ouviu, nem se lhe deu de ouvir, por haver logo percebido a sua perturbação.
- Naturalmente não sabe onde a
pôs, disse ela com ar azedo.
- Ora!…
- Talvez a lançasse à rua…
- Que idéia!
- Estou a ler isso no seu
rosto.
- Impossível! A fita está lá em
casa…
- Pois bem, veja se a traz
amanhã.
- Amanhã? balbuciou Gustavo.
- Perdeu-a, já sei.
- Oh! não; amanhã trago-lhe a
fita.
- Jura?
- Que criancice! Juro.
O espírito de Gustavo achava-se
nessa ocasião na situação de um homem que se deitasse numa cama de espinhos.
Virava-se, revirava-se, espinhava-se, e daria cem ou duzentos rnil-réis para
poder ter a fita ali mesmo no bolso. Queria ao menos ter certeza de que a
acharia em casa. Mas não tinha; e o rosto da moça como que lhe anunciava a
tempestade de arrufos que o esperaria no dia seguinte se não levasse a fita.
Efetivamente Marianinha não se
riu mais nessa noite. Gustavo saiu mais cedo que de costume e foi dali direito
como uma flecha para casa.
Não tenho tintas na minha
paleta para pintar a cena da investigação da fita, que durou cerca de duas
horas e dava para dois capítulos ou três. Uma só gaveta não ficou em casa por
examinar, uma só caixa de chapéu, um só escaninho de secretária. Veio tudo
abaixo. A fita obstinava-se em não aparecer. Gustavo imaginou que ela estaria
na saladeira; a saladeira estava vazia, e era o pior que lhe podia acontecer,
porque o furioso mancebo atirou-a contra um portal e reduziu-a a cacos.
Os dois criados andavam
atônitos; não compreendiam aquilo; muito menos compreendiam o motivo por que o
amo os descompunha, quando eles não tinham notícia nenhuma da fita azul.
Era já madrugada; a fita não
dera sinal de si; toda a esperança se dissipara como fumo. Gustavo tomou a
resolução de se deitar, que os seus criados acharam excelente, mas que para ele
foi perfeitamente inútil. Gustavo não pregou olho; levantou-se às oito horas do
dia 11 fatigado, aborrecido, receoso de um imenso desastre.
Durante o dia fez algumas
investigações relativas à famosa fita; todas elas tiveram o resultado das da
véspera.
Numa das ocasiões em que estava
mais aflito, apareceu-lhe em casa um dos freqüentadores da casa de D. Leonarda,
o mesmo com quem tivera o diálogo acima transcrito. Gustavo confiou-lhe tudo.
O sr. Barbosa riu-se.
Barbosa era o nome do
freqüentador da casa de D. Leonarda.
Riu-se e chamou-lhe criança;
afirmou-lhe que Marianinha era caprichosa, mas que uma fita era uma coisa de
pouco mais que nada.
- Que lhe pode resultar daqui?
disse o sr. Barbosa com um gesto grave. Zangar-se a moça durante algumas horas?
Isso que vale se ela lhe há de dever a felicidade mais tarde? Meu amigo, eu não
conheço a história de todos os casamentos que se têm feito debaixo do sol, mas
creio poder afirmar que nenhuma noiva deixou de casar por causa de um pedaço de
fita.
Gustavo ficou mais consolado
com estas e outras expressões do sr. Barbosa, que se despediu daí a pouco. O
namorado, apenas chegou a noite, vestiu-se com o maior apuro, perfumou-se,
acendeu um charuto, procurou sair de casa com o pé direito, e enfiou para a
casa da srª D. Leonarda.
O coração batia-lhe mais fortemente
quando subiu a escada. Vieram abrir-lhe a cancela; Gustavo entrou e achou na
sala a avó e a neta, a avó risonha, a neta séria e grave.
Ao contrário do que fazia em
outras ocasiões, Gustavo não buscou desta vez achar-se a sós com a moça. Foi
esta quem procurou essa ocasião, no que a avó a ajudou mui simplesmente, indo
ao interior da casa saber a causa de um rumor de pratos que ouvira.
- A fita? disse ela.
- A fita…
- Perdeu-a?
- Não se pode dizer que esteja
perdida, balbuciou Gustavo; não a pude achar por mais que a procurasse; e a
razão…
- A razão?
- A razão é que eu… sim…
naturalmente está muito guardada… mas creio que…
Marianinha levantou-se.
- Minha última palavra é esta…
Quero a fita dentro de três dias; se não ma der, tudo está acabado; não serei sua!
Gustavo estremeceu.
- Marianinha!
A moça deu um passo para
dentro.
- Marianinha! repetiu o pobre
namorado.
- Nem mais uma palavra!
- Mas…
- A fita, dentro de três dias!
Imagina-se, não se
descreve a situação em que ficou a alma do pobre Gustavo, que deveras amava a
moça e que por tão pequena coisa via perdido o seu futuro. Saiu dali vendendo azeite às canadas.
- Leve o diabo o dia em que vi
aquela mulher! exclamava ele caminhando para casa.
Mas logo:
- Não! ela não tem culpa: o
culpado único sou eu! Quem me mandou ser tão pouco zeloso de um mimo dado de
tão boa feição? Verdade seja que eu ainda nesse tempo não tinha no coração o
que agora sinto…
Aqui parava o moço para
examinar o estado do seu coração, que reconhecia ser gravíssimo, a ponto de lhe
parecer que, se não casasse com ela, impreterivelmente iria ter à cova.
Há paixões assim, como devem
saber o leitor e a leitora, e se a dele não fosse assim, é muito provável que
eu não tivesse de contar esta mui verídica história.
Ao chegar à casa procedeu Gustavo
a uma nova investigação, que deu o mesmo resultado negativo. Passou uma noite
como se pode imaginar, e levantou-se de madrugada, aborrecido e furioso consigo
mesmo.
Às oito horas levou-lhe o
criado o café do costume, e na ocasião em que lhe acendia um fósforo para o amo
acender charuto, aventurou esta conjectura:
- Meu amo chegaria a tirar a
fita da algibeira do paletó?
- Naturalmente tirei a fita,
respondeu com rispidez o moço; não me lembra se tirei, mas é provável que sim.
- É que…
- É quê?
- Meu amo deu-me há pouco tempo
um paletó, e pode ser que…
Isto foi um raio de esperança
no ânimo do pobre namorado. Deu um pulo da cadeira em que se achava, quase
entornou a xícara no chão, e sem mais preâmbulo perguntou ao criado:
- João! tu vieste salvar-me!
- Eu?
- Sim, tu. Onde está o paletó?
- O paletó?
- Sim, o paletó…
João cravou os olhos no chão e
não respondeu.
- Dize! fala! exclamou Gustavo.
- Meu amo há de desculpar-me…
Aqui há tempos uns amigos convidaram-me para uma ceia. Eu nunca ceio porque me
faz mal; mas essa noite tive vontade de cear. Havia uma galinha…
Gustavo impaciente bateu com o
pé no chão.
- Acaba! disse ele.
- Havia uma galinha, mas não
havia vinho. Era preciso vinho. Além do vinho, houve quem lembrasse um paio,
comida indigesta, como meu amo sabe…
- Mas o paletó?
- Lá vou. Faltava, portanto,
algum dinheiro. Eu, esquecendo por um instante os benefícios que recebera de
meu amo e sem reparar que uma lembrança daquelas guarda-se para sempre…
- Acaba, demônio!
- Vendi o paletó!
Gustavo deixou-se cair na
cadeira.
- Valia a pena fazer-me perder
tanto tempo, disse ele, para chegar a esta conclusão! Estou quase certo de que
a fita estava no bolso desse paletó!…
- Mas, meu amo, aventurou João,
não será a mesma coisa comprar outra fita?
- Vai-te para o diabo!
- Demais, nem tudo está
perdido.
- Como assim?
- Talvez o homem ainda não
vendesse o paletó.
- Que homem?
- O homem do Pobre
Jaques.
- Sim?
- Pode ser.
Gustavo refletiu um instante.
- Vamos lá! disse ele.
Gustavo vestiu-se no curto
prazo de sete minutos; saiu acompanhado do criado e a trote largo caminharam
para a Rua da Carioca.
Entraram na casa do Pobre
Jaques.
Acharam um velho assentado numa
cadeira examinando um par de calças que lhe levara o freguês talvez para
almoçar nesse dia. O dono da casa oferecia-lhe pelo objeto cinco patacas; o
dono do objeto instava por mil e oitocentos. Afinal cortaram a dúvida,
diminuindo o freguês um tostão e subindo o dono da casa outro tostão.
Acabado o negócio, o velho
atendeu aos dois visitantes, um dos quais, de impaciente andava de um lado para
outro, a passear os olhos nas roupas com a esperança de encontrar o suspirado
paletó.
João era conhecido do velho e
tomou a palavra.
- Não se lembra de um paletó
que eu lhe vendi há coisa de três semanas? disse ele.
- Três semanas!
- Sim, um paletó.
- Um paletó?
Gustavo fez um gesto de
impaciência. O velho não reparou no gesto. Pôs-se a afagar o queixo com a mão
esquerda e os olhos no chão a ver se lembrava do destino que tivera o
paletó introuvable.
- Lembra-me de que lhe comprei
um paletó, disse ele, e por sinal que tinha gola de veludo…
- Isso! exclamou Gustavo.
- Mas creio que o vendi,
concluiu o velho.
- A quem? perguntou Gustavo
desejoso e ansioso ao mesmo tempo de lhe ouvir a resposta.
Antes porém que a ouvisse, ocorreu-lhe
que o velho podia desconfiar do interesse com que procurava saber de um paletó
velho, e julgou necessário explicar que não se tratava de nenhuma carteira, mas
de uma lembrança de namorada.
- Seja lá o que for, disse o
velho sorrindo, eu nada tenho com isso… Agora me lembro a quem vendi o paletó.
- Ah!
- Foi ao João Gomes.
- Que João Gomes? perguntou o
criado.
- O dono da casa de pasto que
fica ali quase no fim da rua…
O criado estendeu a mão ao
velho e murmurou algumas palavras de agradecimento; quando porém voltou os
olhos, não viu o amo, que apressadamente se dirigia na direção indicada.
oão Gomes animava os caixeiros
e a casa regurgitava de gente que comia o seu modesto almoço. O criado do
bacharel conhecia o dono da casa de pasto. Foi direito a ele.
- Sr. João Gomes…
- Olé! você por aqui!
- É verdade; venho tratar de um
assunto importante.
- Importante?
- Muito importante.
- Fale, respondeu João Gomes
entre receoso e curioso.
Ao mesmo tempo lançou um olhar
desconfiado para Gustavo que se conservara de parte.
- Não comprou o senhor um
paletó em casa do Pobre Jaques?
- Não, senhor, respondeu muito
depressa o interpelado.
Era evidente que receava alguma
complicação de polícia. Gustavo compreendeu a situação e interveio para
sossegar o ânimo do homem.
- Não se trata de nada que seja
grave para o senhor, nem para ninguém exceto para mim, disse Gustavo.
E contou o mais sumariamente
que pôde o caso da fita, o que tranqüilizou efetivamente o espírito do
comprador do paletó.
- Uma fita azul, diz V. S.?
perguntou João Gomes.
- Sim, uma fita azul.
- Achei-a na algibeira do
paletó e…
- Ah!
- Tinha dois nomes bordados,
creio eu…
- Isso.
- Obra muito fina!
- Sim, senhor, e então?
- Então? Ora, espere… Eu tive
esta fita alguns dias comigo… até que um dia… de manhã… não, não era de manhã,
era de tarde… mostrei-a a um freguês…
Estacou o sr. João Gomes.
- Que mais? perguntou o criado
do bacharel.
- Creio que era o Alvarenga…
Era, era o Alvarenga. Mostrei-lha, gostou muito… e pediu-ma.
- E o senhor?
- Eu não precisava daquilo e
dei-lha.
Gustavo teve vontade de engolir
o dono da casa de pasto. Como porém nada adiantasse com esse ato de selvageria
preferiu fazer indagações relativas ao Alvarenga, e soube que morava na Rua do
Sacramento.
- Ele guarda aquilo por curiosidade,
observou João Gomes; se V. S. lhe contar o que há, estou certo de que lhe
entrega a fita.
- Sim?
- Estou certo disso… Até se
quiser eu mesmo lhe falo; ele há de cá vir almoçar e talvez a coisa se arranje
hoje mesmo.
- Tanto melhor! exclamou Gustavo.
Pois, meu amigo, veja se me consegue isso, e far-me-á um grande favor. O João
aqui fica para me levar a resposta.
- Não tem dúvida.
Gustavo foi dali almoçar no
Hotel dos Príncipes, onde João devia ir ter a dar-lhe conta do que houvesse. O
criado demorou-se muito menos porém do que pareceu ao ansioso namorado. Já lhe
parecia que ele não viria mais, quando a figura de João assomou à porta.
Gustavo levantou-se à pressa e saiu.
- Que há?
- O homem apareceu…
- E a fita?
- A fita estava com ele…
- Achou-se?
- Estava com ele, porque o João
Gomes lha tinha dado, como meu amo sabe, mas parece que já não está.
- Inferno! exclamou Gustavo
lembrando-se de um melodrama em que ouvira exclamação análoga.
- Já não está, continuou o
criado como se estivesse saboreando estas ânsias do amo, já não está, mas
podemos dar com ela.
- Como?
- O Alvarenga é procurador, deu
a fita à filhinha do desembargador com quem trabalha. Ele mesmo incumbiu-se de
arranjar tudo…
Gustavo perdera de todo as
esperanças. A esquiva fita nunca mais lhe tornaria às mãos, pensava ele, e com
esta idéia ficou acabrunhado.
João entretanto reanimou-se
como pôde, afiançando-lhe que achava no sr. Alvarenga muito boa vontade de o
servir.
- Sabes o número da casa dele?
- Ele ficou de ir à casa de meu
amo.
- Quando?
- Hoje.
- A que horas?
- Às ave-marias.
Era um suplício fazê-lo esperar
tanto tempo, mas como não havia outro remédio, Gustavo curvou a cabeça e foi
para casa, disposto a não sair sem saber o que era feito da encantada fita.
Cruelíssimo foi aquele dia para
o mísero namorado, que não podia ler, nem escrever, que só podia suspirar,
ameaçar o céu e a terra e que mais de uma vez ofereceu ao destino as suas
apólices por um pedaço de fita.
Dizer que jantou mal, é
noticiar ao leitor uma coisa que ele naturalmente adivinhou. A tarde foi
terrível de passar. A incerteza misturava-se à ânsia; Gustavo ardia por ver o
procurador, mas receava que nada trouxesse, e que a noite desse dia fosse muito
pior que a antecedente. Pior seria decerto, porque o plano de Gustavo estava
feito: atirava-se do segundo andar à rua.
A tarde caiu de todo, e o
procurador, fiel à sua palavra, bateu palmas na escada.
Gustavo estremeceu.
João foi abrir a porta:
- Ah! Entre, sr. Alvarenga,
disse ele, entre para a sala; meu amo está à sua espera.
Alvarenga entrou.
- Então que há? perguntou
Gustavo depois de feitos os primeiros cumprimentos.
- Há alguma coisa, disse o
procurador.
- Sim?
E logo:
- Há de admirar-se talvez da
insistência com que procuro esta fita, mas…
- Mas é natural, acudiu o
procurador abrindo a caixa de rapé e oferecendo uma pitada ao bacharel, que com
um gesto recusou.
- Então parece-lhe que há
alguma coisa? perguntou Gustavo.
- Sim, senhor, respondeu o
procurador. Eu tinha dado aquela fita à filha do desembargador, menina de dez
anos. Quer que lhe conte a maneira por que isso aconteceu?
- Não precisa.
- Sempre lhe direi que eu gosto
muito dela, e ela de mim. Posso dizer que a vi nascer. A menina Cecília é um
anjo. Imagine que tem os cabelos louros e está muito desenvolvida…
- Ah! fez Gustavo não sabendo o
que havia de dizer.
- No dia em que o João Gomes me
deu a fita dizendo-me: “Tome lá o senhor que tem em casa exposição!” Exposição
chama o João Gomes a uma coleção de objetos e trabalhos preciosos que tenho e
vou aumentando… Nesse dia, antes de ir para casa, fui à casa do desembargador…
Neste ponto entrou na sala o
criado João, que, por uma idéia delicada, lembrou-se de trazer uma xícara de
café ao sr. Alvarenga.
- Café? disse este. Não recuso
nunca. Está bom de açúcar… Oh! e que excelente café! V. S. não sabe como eu
gosto de café; bebo às vezes seis, oito xícaras por dia. V. S. também gosta?
- Às vezes, respondeu Gustavo
em voz alta.
E consigo mesmo:
“Vai-te com todos os diabos!
Estás apostado para fazer-me morrer de aflição!”
O sr. Alvarenga ia saboreando o
café, como entendedor, e contando ao bacharel a maneira por que dera a fita à
filha do desembargador.
- Ela estava a brincar comigo,
enquanto eu tirava do bolso alguns papéis para dar ao pai. Com os papéis veio a
fita. “Que bonita fita!” disse ela. E pegou na fita, e pediu-me que lha desse.
Que faria V. S. no meu caso?
- Dava.
- Foi o que eu fiz. Se visse
como ficou alegre!
O sr. Alvarenga acabara de
tomar o café, ao qual fez um novo elogio; e depois de sorver voluptuosamente
uma pitada, continuou:
- Já eu não me lembrava da fita
quando hoje o sr. João Gomes me contou o caso. Era difícil achar a fita, porque
isto de crianças V. S. sabe que são endiabradas, e então aquela!
- Está rasgada? perguntou
Gustavo ansioso por vê-lo chegar ao fim.
- Parece que não.
- Ah!
- Quando lá cheguei perguntei
com muita instância pela fita à senhora do desembargador.
- E então?
- A senhora do desembargador
respondeu-me com muita polidez que não sabia da fita; imagine como fiquei. Chamou-se
porém a menina, e esta confessou que uma sua prima, moça de vinte anos, lhe
tirara a fita da mão, logo no dia em que eu lha dei. A menina chorara muito,
mas a prima dera-lhe em troco uma boneca.
Esta narração foi ouvida por
Gustavo com a ansiedade que o leitor naturalmente imagina; as últimas palavras,
entretanto, foram um golpe mortal. Como haver agora essa fita? De que maneira e
com que razões se iria procurar nas mãos da moça o objeto desejado?
Gustavo comunicou estas
impressões ao sr. Alvarenga, que, depois de sorrir e tomar outra pitada, lhe
respondeu que dera alguns passos a ver se a fita pudesse vir parar às suas
mãos.
- Sim?
- É verdade; a senhora do
desembargador ficou tão penalizada com a ansiedade que eu mostrava, que me
prometeu fazer alguma coisa. A sobrinha mora no Rio Comprido; a resposta só
pode estar nas suas mãos depois de amanhã porque eu amanhã tenho muito que
fazer.
- Mas virá a fita? murmurou
Gustavo com desânimo.
- Pode ser, respondeu o
procurador; tenhamos esperança.
- Com que lhe hei de pagar
tantos favores? disse o bacharel ao procurador que se levantara e pegara no
chapéu…
- Sou procurador… dê-me alguma
coisa em que eu possa prestar-lhe os meus serviços.
- Oh! sim! a primeira que me
vier agora é sua! exclamou Gustavo para quem uma causa era ainda objeto
puramente mitológico.
O procurador saiu.
- Então, até depois de amanhã?
disse João que ouvira quase toda a conversa, colado no corredor,
- Sim, até depois de amanhã.
O dia em que o procurador devia
voltar à casa de Gustavo era o último do prazo marcado por Marianinha. Gustavo
esperou por ele sem sair de casa; não queria aparecer sem estar desenganado ou
feliz.
O sr. Alvarenga não marcara
hora. Gustavo acordou cedo, almoçou, e esperou até o meio-dia sem que o
procurador desse sinais de si. Era uma hora quando apareceu.
- Há de desculpar-me, disse ele
logo ao entrar; tive uma audiência na segunda vara, e por isso…
- Então?
- Nada.
- Nada!
- Ela tem a fita e declara que
a não dá!
- Oh! mas isso é impossível!
- Também eu disse isso, mas
depois refleti que não há outro recurso senão contentarmo-nos com a resposta.
Que poderíamos nós fazer?
Gustavo deu alguns passos na
sala, impaciente e abatido ao mesmo tempo. Tanto trabalho para tão triste fim!
Que importava que ele soubesse onde parava a fita, se não podia havê-la às
mãos? O casamento estava perdido; o suicídio unicamente.
Sim, o suicídio. Apenas o
procurador Alvarenga saiu da casa de Gustavo, este sondou o seu coração e mais
uma vez se convenceu de que não podia resistir à recusa de Marianinha; senão
matar-se.
“Caso-me com a morte!” rugiu
ele surdamente.
Outra reminiscência de
melodrama.
Assim assentado o seu plano,
saiu Gustavo de casa, logo depois de ave-marias e dirigiu-se para a casa de D.
Leonarda. Entrou comovido; estremeceu quando deu com os olhos em Marianinha. A
moça tinha o mesmo ar severo com que lhe falara a última vez.
- Por onde andou estes três
dias? disse D. Leonarda.
- Estive muito ocupado,
respondeu secamente o moço, e por isso… As senhoras têm passado bem?
- Assim, assim, disse D.
Leonarda.
Depois:
“Estes pequenos andam
arrufados!” pensou ela.
E posto fosse severíssima em
pontos de namoro, todavia compreendeu que para explicar e acabar arrufos a
presença de uma avó era de algum modo prejudicial. Pelo que, assentou retirar-se
durante cinco minutos, a pretexto de ir ver o lenço de tabaco.
Apenas se acharam sós os dois
namorados, rompeu o seguinte diálogo a muito custo de ambos, porque nenhum
deles queria começar primeiro. Foi Gustavo quem cedeu:
- Não lhe trago a fita.
- Ah! disse a moça com frieza.
- Alguém ma tirou, talvez,
porque eu…
- Que faz a polícia?
- A polícia!… Está zombando
comigo, creio eu.
- Apenas crê?
- Marianinha, por quem é,
perdoe-me se…
Neste ponto teve Gustavo uma
idéia que lhe pareceu luminosa.
- Falemos franco, disse ele; eu
tenho a fita comigo.
- Sim? deixe ver.
- Não está aqui; mas posso
afirmar-lhe que a tenho. Imponho todavia uma condição… Quero ter este prazer de
impor uma condição…
- Impor?
- Pedir. Mostrar-lhe-ei a fita
depois que estivermos casados.
A idéia, como a leitora vê, não
era tão luminosa como ele pensava; Marianinha deu uma risadinha e levantou-se.
- Não acredita? disse Gustavo
meio enfiado.
- Acredito, disse ela; e tanto
que aceito a condição.
- Ah!
- Com a certeza de que não a há
de cumprir.
- Juro…
- Não jure! A fita está aqui.
E Marianinha tirou da algibeira
o pedaço de fita azul com os nomes de ambos bordados a seda, a mesma fita que
ela lhe dera.
Se o bacharel Gustavo tivesse
visto as torres de S. Francisco de Paula subitamente transformadas em duas
muletas, não se admiraria tanto como quando a moça lhe mostrou o pedaço de fita
azul.
Só no fim de dois minutos pôde
falar:
- Mas… esta fita?
- Silêncio! disse Marianinha
vendo entrar a avó.
A leitora naturalmente acredita
que a fita fora entregue a Marianinha pela sobrinha do desembargador, e
acredita a verdade. Eram amigas; sabiam do namoro uma da outra; Marianinha
tinha mostrado à amiga a obra que fazia para dar ao namorado, de maneira que
quando a fita azul caiu nas mãos da pequena suspeitou naturalmente que era a
mesma, e obteve-a para mostrá-la à neta de D. Leonarda.
Gustavo não suspeitara nada
disto; estava aturdido. Estava sobretudo envergonhado. Acabava ser apanhado em
flagrante delito de peta e fora desmentido do mais formidável modo.
Nestas alturas não há de
demorar o desfecho. Apresso-me a dizer que Gustavo saiu dali abatido, mas que
no dia seguinte recebeu uma carta de Marianinha, em que lhe dizia, entre outras
coisas, esta: “Perdôo-lhe tudo!”
Machado
de Assis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias (1876)
~Mayra Fernanda de Avila Pereira . Nº 31
Publicado originalmente em Jornal das Famílias (1876)
~Mayra Fernanda de Avila Pereira . Nº 31